Acordei há pouco e tirei meus piercings. Tirei todos os do rosto e a trave da orelha, e consegui até tirar o do umbigo que há semanas eu venho tentando desenroscar sem sucesso. O da língua não faz muita diferença porque sempre o tiro e passo dias sem ele e o furo não fecha. Bem, mas eu nunca passei mais de uma semana sem ele, então vamos ver no que dá.
Ah, meus senhores, eu acordei, me olhei no espelho e me senti tão profundamente cansada de ser julgada por conta de uns pedacinhos de aço cirúrgico... Estou muito cansada. Estou farta dessa luta diária contra um preconceito que não vai mudar. Estou cansada de ser olhada na rua como um alienígena. O problema está nos outros e isso é algo totalmente fora dos meus domínios, do meu controle. Eles que fiquem com seu preconceito estúpido.
Talvez seja o lugar, talvez isso daqui seja prosaico demais pra mim, mas eu não quero me mudar, além do mais, pra onde eu iria? Pra Europa? Hahahahahah. Piada sem graça. Não posso bancar uma viagem nem pra Goiânia.
Agora os outros terão que achar um outro tipo de desculpa pra me condenar antes de trocar meia dúzia de palavras comigo. Vamos dar tempo ao tempo porque a idiotice das pessoas, como dizia o Nelson Rodrigues, é realmente infinita e a imaginação delas pra o mal não fica pra trás. Não são os piercings, serão outra coisa.
Fico triste, meus senhores, por ser derrotada por tamanha vilania, pelo cansaço da repreensão no olhar dos outros. Mas eu quero poder sair sem que as pessoas me olhem. Quero ser mais uma pessoa de cinza na multidão. Fico triste por ter feito isso motivada não por uma mudança interior profunda nos meus pontos de vista ou até por ter enjoado dos meus piercings, e sim por puro cansaço.
Pra os outros eu agora serei uma pessoalmente diferente, mas isso é porque os outros não me conhecem, não sabem porra nenhuma. Os outros que se fodam! Que se fodam! Até parece que tirar os piercings, assim como o fato de tê-los colocado, mudaria o que eu sou.
Bem, isso era algo que eu já sabia que aconteceria, algo que seria o final do
meu plano de adaptação ao meio, mas era pra ter sido feito aos poucos, como as outras mudanças que eu venho fazendo há algum tempo, mas eu sou assim, destemperada, impulsiva...
Seguindo o
meu plano de adaptação ao meio, há meses eu comecei a comprar camisetinhas nas lojas renner, tirei os piercings do mamilo e, há duas semanas, pintei o cabelo de chocolate. Agora ele está bem castanho-claro, bem na média, bastante aceitável. É isso aí, meus senhores, um dia eu chego lá, um dia serei bem aceitável.
Mas estou triste. Cansada e triste. Me sentindo derrotada. Pra os outros são só piercings, mas significava muito pra mim. Isso, aliás, é um paradoxo! Enquanto se trata de tirar os piercings e da minha tristeza a respeito disso, os outros dizem "que é isso?, são só piercings....", mas quando se trata de deixá-los estampados no meu corpo, aí eles se transfiguram em símbolos de porralouquice, de perversões sexuais, indício fortíssimo de ligação com a marginália, algo horroroso e que eu não deveria de forma alguma usar.
Acho que, agora, eu vou fazer quase o contrário do que fiz antes: se eu dava a impressão de que era uma doidona, mas no fundo sou bem normalzinha, agora vou dar a impressão de que sou normal o bastante e serei do mesmo jeitinho que sempre fui por dentro. As pessoas continuarão chocadas ao me ouvir dizer que sou feminista e que apoio a causa homossexual e que acho os negros os homens mais bonitos e que não pretendo casar e nem muito menos procriar e que detesto animais e etc. Bem, talvez agora as pessoas não se sintam tão surpresas ao saber que eu faço crochê ou que choro até vendo propaganda...
Estou com vontade de chorar de raiva por ter sido vencida pelo cansaço. E estou me sentindo enjoada... Estou com aquilo de sentir no corpo algo que só deveria existir dentro da minha cabeça. Que merda.
Mas, se eu mudar de idéia, meus senhores, na semana que vem coloco todos os piercings de novo e até mais alguns.
'De novo' essa expressão está ficando meio repetitiva no que diz respeito a fazer coisas doidas com minha aparência. Talvez a coisa mais radical que eu tenha feito nos últimos anos foi justamente tirar os piercings e pintar o cabelo de castanho... Que merda.