terça-feira, julho 19, 2005

17/07/05

As vezes eu tenho uma vontade tão grande de escrever! Uma urgência, uma tal aflição e angústia, algo que me invade numa ânsia muito maior do que a que sinto quando quero falar com alguém por exemplo. Escrever sempre foi, para mim, a melhor forma de desabafar porque aqui as palavras não se perdem, depois podem ser revistas, revisitadas, analisadas, ruminadas e digeridas. Quando se fala com outra pessoa, as palavras se esvaem. Algumas são absorvidas pelos ouvidos da pessoa, outras se perdem. Não gosto que as palavras se percam. Isso me causa um terrível mal-estar. Acho que sou terrivelmente controladora, quero controlar até o fluxo das palavras, e sofro porque sei que isso é impossível. Mal consigo controlar as palavras que falo porque, danadinhas, elas se escondem de mim quando preciso delas, se escondem e brincam comigo, com meus nervos. Eu tento procurá-las e, muitas vezes, só as encontro no Houaiss, depois de buscar entre vários sinônimos. Sinto uma brutal necessidade de usar as palavras apropriadas, ainda que elas sejam totalmente inadequadas aos olhos dos outros, ou simplesmente banais. Mas eu gosto das palavras, especialmente das ordinárias, das gírias, dos palavrões. No entanto, me preocupo com o fato de não usar palavras antigas porque tenho medo que elas só existam mesmo no dicionário. As palavras devem ser mantidas vivas. Hoje, por exemplo, eu estava procurando mixomatose[i] e aí me deparei com uma palavrinha que gosto mas que vivo esquecendo: mixórdia[ii]. Pensei em adota-la. Acho que escolherei uma palavra de pouco uso cotidiano todo dia pra usar, nem que seja numa frase sem sentido, só pra encaixa-la.

Passei o dia inteiro deitada, dormindo na maioria esmagadora do tempo, mas os breves momentos em que estive desperta, pensei em coisas como essa que escrevi agora. Pensei também na questão das rimas na música, e em como os autores sacrificam o sentido em prol da rima. Pensei que se eu escrevesse música, talvez sempre preferisse o conteúdo às rimas, fazendo coisas que soariam estranhas e desconexas, mas quem disse que a música tem que ser sempre confortável? É bom incomodar as pessoas, fazer com que saiam do seu estado de inércia. Inércia. Hum... hora de consultar novamente o Houaiss. É, inércia[iii] é a palavra certa. Uma vez li que o natural do ser humano não é a inércia, mas o movimento. Então as pessoas assim tão bem acomodadas, tão inertes, precisam voltar ao movimento, à agitação, e pra isso deve haver desconforto.
O que me fez pensar nessa coisa das rimas foi uma música em que o Lenine diz “as vezes eu penso que sai dos seus olhos o feixe/ de raio que controla as ondas cerebrais do peixe”. É isso ou quase isso, vai. Mas, enfim, o ponto é que a música é bem bacana, soa bem, mas rimar feixe com peixe foi tão desnecessário. Achei bobo pra dizer a verdade. Eu, que sou uma reles ninguém, até poderia rimar feixe com peixe assim tão bobamente, mas o Lenine não, ele faz coisas muito melhores. E aí fiquei pensando que seria melhor não rimar porra nenhuma. Sei lá, música é uma coisa complicada porque envolve tantas outras coisas, envolve pensar e sentir, coisas que nem sempre se combinam harmonicamente. Se bem que tenho muitas dúvidas a respeito da separação entre o pensar e o sentir, mas isso fica pra um outro dia.

É estranho, as vezes tenho tanta vontade de escrever que é como se eu pudesse escrever sobre tudo, tudo o que existe no mundo e até sobre o que nem existe. Acho que entendo o Bispo[iv]: é como se a gente devesse passar o mundo a limpo. Talvez por isso eu goste das coisas dele, que não me parecem loucura, ao contrário, parecem extremamente coerentes. Gosto das palavras dele, na seqüência em que ele escreveu, pena que conheço pouco. Elas fazem sentido. É estranho sentir isso, essa vontade louca de ir remontando o mundo, como se fosse necessário esse esforço que é, na verdade, totalmente irrelevante, de se dar uma visão nova sobre o mundo, bem, talvez não nova, mas pessoal. Digo que é irrelevante em termos de utilidade para a humanidade. Mas talvez sejam só esses esforços o necessário para a humanidade continuar a ser a humanidade.
A Verdade não me interessa. Tampouco a Beleza. Eu gosto do que parece ser humano, isso de buscar coisas inefáveis. O intangível. Gastar tempo pensando sobre o que é a Vida, a Liberdade, o Amor, a Verdade, isso é humano porque inútil. Ninguém nunca vai saber definir exatamente, medir, pesar, quantificar tais coisas. Então por que a gente gasta tanto tempo pensando e falando a respeito? Porque isso faz parte da nossa natureza. Procurar explicações e fabricá-las mas sempre acreditando que não se trata de algo construído, forjado por nós, mas algo simplesmente percebido por nós, nos dado por algo maior e melhor que a nossa inteligência. Pois eu admiro a inteligência humana, capaz de criar mundos, universos inteiros dentro da própria mente e capaz de expelir criações e vivificar material inerte e contar maravilhas, tragédias, o sublime, o escatológico. A capacidade de criar a que chamamos Arte, é para mim, aquilo que justifica a existência da humanidade. Nós criamos deuses, criamos a necessidade do Amor, a esperança em um amanhã melhor. Nós criamos isso!
Ok, nós também criamos a propriedade privada, a fome, a guerra, e blá, blá, blá, mas isso faz parte de nós também, da nossa complexidade. Não há nada que seja 100% bom e 100% natural. Os seres humanos, criaturas do mundo, são naturais, tanto quanto cactos ou planárias; nós possuímos uma natureza complexa e rica como as orquídeas e os golfinhos, essencialmente não somos bons ou ruins, nós somos o que somos.
Infelizmente temos uma coisa que nem os golfinhos, orquídeas, planárias e cactos têm: educação. Eles são criados pelo mundo e suas contingências. Nós somos criados por outros humanos. Eu que sou professora acho que posso falar a respeito disso. A educação que recebemos em casa, na escola e na vida, faz com que sejamos monstros egoístas capazes de fabricarmos armas e estouramos os miolos de crianças indefesas. Nossa educação faz com que nos sintamos infinitamente superiores aos outros porque possuímos um celular com câmera ou um tênis nike, ou porque nosso deus – tão pré-fabricado quanto qualquer outro – é infinitamente mais misericordioso e justo que o deus dos outros e, por isso, eles devem ser mortos sem nenhuma compaixão.
A forma como somos educados nos transformou nesses poços de frustrações, paranóias, e mais um sem número de patologias mentais como acreditar piamente que alguém é superior ou inferior pela cor da pele, altura, peso, e blá, blá, blá, coisas que no mundo dos outros animais são características levadas em consideração por fins reprodutivos, no nosso mundo, o mundo dos humanos, tão moderno e sofisticado, aqui no nosso mundinho essas características têm peso ainda, na verdade tem peso demais.
Mas, enfim, eu gosto da humanidade. Só me chateia o fato de sermos tão imbecis, mas acho que por conta da nossa capacidade latente de Criar, sublimamos nossa mediocridade. Meus senhores, quando eu digo Criar, estou me referindo sempre à Arte, nunca à reprodução porque procriar é uma maldição, a prova é o número de crianças abandonadas por aí, o número de abortos realizados anualmente, o número de adultos problemáticos frutos de pais perturbados. Ao invés dos seres humanos procriarem, deveriam tentar Criar. Ao invés de filhos, deveriam parir sonetos, esculturas, música, sei lá. Antes um livro acumulando poeira numa prateleira de biblioteca que uma criança crescer sozinha, sabendo-se rejeitada.
O fato de eu ser pró-controle de natalidade também é assunto pra uma próxima estorinha porque é um assunto muito comprido. Mas o fato é que eu me incomodo muito com a irresponsabilidade das pessoas, ricas ou pobres, que têm filhos sem a menor condição de dar o que uma pessoa merece: atenção, carinho, respeito, fora refeições saudáveis e educação formal de qualidade, mas o básico, o básico mesmo é o amor, porque os outros conceitos estão, em teoria – muitíssima teoria –, associados a ele. E eu digo isso com conhecimento catedrático no assunto: só quem teve pais ausentes, negligentes e/ou violentos, enfim desestruturados, sabe o que é isso. Sei lá, às vezes quando penso nisso, na falta de amor pelos humanos e pelo mundo que nós temos e demonstramos claramente todos os dias em quase todas as nossas ações, penso que talvez a melhor solução seja mesmo o nosso extermínio. Todos vamos morrer um dia mesmo, talvez a gente devesse morrer todos de uma vez logo e deixar o planeta livre pra os outros animais que são muito melhores do que nós. Menos as baratas. As baratas deveriam ser exterminadas, dizimadas, aniquiladas muito antes de nós. E foda-se o equilíbrio da cadeia alimentar, os ecossistemas, biomas e blá, blá, blás. As baratas devem morrer. Depois a gente também pode morrer tranqüilamente.

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[i] Por conta da música Myxomatosys (Judge, Jury & Executioner) do Radiohead.
Mixomatose s.f. 1 Pat estado orgânico caracterizado pela presença de mixomas múltiplos 2 Vet doença virótica que ataca coelhos e provoca lesões de pele semelhantes a mixomas e dilatação das membranas mucosas.
Mixomas s.m. Med tumor benigno, de consistência macia, constituídos por fibroblastos imersos em muco, que se desenvolve ger. Sob a pele, nos membros e no pescoço.

[ii] Mixórdia s.f. 1 mistura confusa de coisas variadas; mistifório, confusão, bagunça, barafunda 2 situação ou fato atrapalhado e conflituoso; embrulhada, desentendimento, atrapalhação 3 comida ou bebida misturada e intragável, mistela, tiborna, gororoba.
Mistifório s.m. infrm. pej. mistura indistinta de coisas ou pessoas; mixórdia, confusão.
Mistela s.f. bebida feita com vinho, água, açúcar e canela 2 amontoado de coisas diversas, misturadas; miscelânea, confusão 3 vinho de baixa qualidade e/ou de mau sabor 4 infrm. comida malfeita, ruim, ger. com vários ingredientes misturados; gororoba, mixórdia.
Tiborna s.f. 1 pão quente embebido em azeite novo 2 qualquer refeição ao ar livre no campo; piquenique 3 misturada de comidas ou bebidas 4 fig. mistura confusa; mixórdia 5 fig. situação atrapalhada; mixórdia 6 líquido entornado 7 b fezes do alambique, depois da destilação 8 b n.e. coisa ruim, sem valor; porcaria.

[iii] Inércia s.f. 1 fis resistência que a matéria oferece a aceleração 2 quim propriedade que possui uma substância de não reagir em contato com outra 3 fig falta de reação, de iniciativa; imobilismo, estagnação 4 fig. estado de abatimento caracterizado pela ausência de reação, pela falta de energia física ou moral; apatia, indolência, prostração 5 fig. obsl. falta de habilidade; inaptidão, incapacidade.

[iv] Bispo do Rosário, José Arthur (1909-1989), artista brasileiro. Esquizofrênico, psicótico e paranóico, viveu internado na Colônia Juliano Moreira, Rio de Janeiro, durante 50 anos. Ficou conhecido com o nome de Arthur Bispo do Rosário. Nasceu em Japaratuba, Sergipe, e morreu no Rio de Janeiro. Produziu volumosa e personalíssima obra, composta por mais de 800 peças, entre objetos ou assemblages que se dividem em grandes temas recorrentes: as roupas e os mantos, os estandartes, os arquivos, e os objetos mumificados. Para fazer seus bordados, ele mesmo produzia a linha, desfiando, pacientemente, qualquer pano que lhe caísse em mãos.