segunda-feira, julho 25, 2005

over my deadbody

Over my dead body

Tava chovendo pra caralho. Era mais uma daquelas noites em que eu me perguntava como podia cair tanta água do céu, esse céu desbotado, com cara de gasto. Céu puído. Mas eu tava pirando naquela casa, cara. Eu tava pirando. Saí na chuva. Precisava andar sozinha e, sei lá, esquecer um pouco de tudo, não pensar em nada, só andar.
Ela disse que eu ia acabar pegando uma pneumonia e morrendo. Eu respondi tomara. Às vezes eu simplesmente queria mesmo morrer, mas nesse dia, nesse dia eu tava só andando, perambulando pela cidade e sentindo a chuva cair em mim, sentindo cada centímetro do meu corpo molhado e então eu vi esse cara, um cara que esbarrou em mim numa esquina e sorriu e eu só pude pensar em quantos dentes ele tinha na boca porque parecia que deveria ter o dobro do normal. Parecia um desses personagens de desenho animado, o vilão caricato e cheio de dentes. Ele pediu desculpas, eu dei de ombros e prossegui. Pensava naquela enorme quantidade de dentes na boca de um ser humano. Pensei em como ter dentes bonitos é uma coisa importante na nossa sociedade. Eu, pelo menos, nunca fui muito chegada a aproximações físicas com pessoas de sorrisos feios, dentes tortos, amarelos. O pior é que quando converso com alguém de dentes feios eu sempre olho fixamente pra boca da pessoa. É uma coisa mórbida, sei lá que porra me acontece. Eu quero desviar o olhar, mas não dá, parece que a pessoa tem a porra dum ímã naquela bocona feia. Sei lá. Eu tava pensando isso enquanto atravessava uma rua e vi o dentuço do outro lado, debaixo do toldo de uma padaria fechada. Enquanto eu ia em sua direção, quer dizer, na direção da calçada, tentei não olhar, mas ele sorriu e aí fudeu, fiquei ali olhando aquela bizarrice, mas foi só um momento, não sei dizer exatamente quantos segundos se passaram, mas agora pouco importa.
Cara, você alguma vez já desmaiou? É uma sensação estranha. Eu já havia desmaiado antes, quando era pequena e meu pai perdia o controle, mas aquilo ali foi diferente, eu nunca tinha desmaiado daquele jeito, assim do nada. Do nada, cara, tô te falando. Eu só soube que tinha desmaiado, na real, quando acordei porque o dentuço filho da puta tava mijando na minha cara. Antes que eu esboçasse qualquer reação, ele já tinha sumido. É, cara, sumido. O cara tava mijando na porra da minha cara e aí, sumiu. Foi questão de segundos, cara.
Quando me levantei, tava zonza pra caralho, parecia que eu tinha tomado um puta porre. Pensei só em procurar minha carteira porque os meus últimos dez contos e uns vales transportes estavam ali. A porra da carteira continuava no meu bolso de trás. Que merda, pensei, melhor voltar agora. Então eu olhei ao redor e só aí eu saquei que não tava mais na rua onde eu tinha visto o dentuço. Na real eu não fazia a menor idéia de onde estava. Parecia um lugar familiar, sei lá, um beco qualquer dos milhares que havia na porra da cidade, só que aquele era mais escuro, ou talvez mais claro, agora não sei mais, cara. Mas é claro que eu fiquei com medo, porra! Quem tem cú, tem medo, né não?! Tentei ficar fria e sair fora o mais rápido possível pra um lugar que eu conhecesse. Então fui andando na direção de umas luzes e de barulho de gente conversando, tipo uma televisão. Passei por uma janela e vi que realmente tinha uma televisão, mas não tinha ninguém naquela sala. Sei lá porque eu resolvi parar ali, mas parei. Alguma coisa na tv me pareceu familiar: era a porra do meu prédio e tinha uma confusão de policiais e repórteres, coisa típica desses programas policiais da tv, saca? Alguém tentava entrevistar a vadia, mas ela chorava, escondia o rosto e dizia ela ficou louca, não sei o que aconteceu. Então apareceu bem ali, bem na porra da televisão na merda do Barra Pesada o meu cadáver todo fodido no asfalto. Acho que eu pulei do último andar. Como? Não sei, nunca fui muito boa em explicar merda nenhuma, eu só sei que me senti estranha, cara, como se tudo fizesse sentido, como quando você toma ácido pela primeira vez e parece que todo o quebra-cabeças se encaixa de uma só vez e você roda dentro de si tão rapidamente que esquece o segredo, mas você se lembra que soube de tudo, que soube da merda toda. Por um segundo, você foi Deus. Mas dessa vez eu não tinha tomado ácido nenhum e a sensação de que eu era Deus me bateu mais forte que qualquer merda que eu já tinha tomado na vida. Caralho, eu sabia de tudo. Eu soube de tudo. E foi na hora em que eu reparei que não estava mais chovendo, que eu já não sabia mais de nada, e reparei também que era noite, mas uma noite diferente, uma noite com uma luz de aurora-boreau, mas eu sabia que não tava na porra da Finlândia pra ver aquela luz, mas foda-se onde eu tava agora, eu tava morta, cara. Eu tava morta, porra, e me sentia bem.