pausa para o café da manhã
Pausa para o café da manhã.
Eu estava lendo O Amante.
Eu queria ser escritora também. Não vai dar, não tenho talento nem imaginação. Nada. Nunca vivi amores impossíveis, nunca vi uma guerra. Também não tenho olhos pra transformar o cotidiano que me ronda – e sufoca – em literatura. Jamais escreverei uma linha. Uma pena.
Acordei há mais de uma hora atrás de um sonho muito estranho, do qual só me lembro de uma casa alta onde algumas pessoas tentavam fugir Do Mal, O Grande Mal, Um Monstro talvez, e eu tentava fechar as janelas cheias de travas mas sempre tinha que abrir tudo porque chegavam pessoas que eu deveria pôr pra dentro. Sonho estranho e que ficava sendo recortado pelo trailler de um filme hollywoodiano que nunca existiu senão no meu sonho. E, de repente, o sonho e o trailler se fundiram porque a velha servindo animais estranhos, lêmures, eu acho, numa gosma verde pra si e cru para as personagens, estava ali, dentro da casa que eu tentava proteger.
Quando acordei, não sei porquê, pensei logo que O Grande Mal havia entrado na casa por minhas próprias mãos, que era uma daquelas pessoas que eu havia posto pra dentro. E que eu acordara pra não ver o triste fim da luta em fechar as travas infinitas daquela janela. Eu ficava pensando, no sonho, o que faria se O Monstro aparecesse bem ali na minha frente e eu tentando fechar as travas, as travas que pareciam não acabar nunca e era apenas uma janela. Pensei nas outras janelas e deveria haver várias porque a casa era grande. Se O Monstro entrasse, e eles sempre dão um jeito de entrar, como eu faria pra fechar aquelas benditas travas? Aquelas travas, apesar de parecerem infinitas, não serviriam de nada contra O Mal.
Resolvi fazer a pausa pra o café da manhã porque um dos meus vizinhos resolveu compartilhar seu PÉSSIMO gosto musical com toda a quadra. Quando acordei não havia música, só mesmo os barulhos do Plano num domingo, tranqüilo, ótimo pra se ler. Fiquei deitada lendo e então, pra minha infelicidade, começou o auê. Nunca compreenderei essa necessidade de ouvir música em casa como se estivesse numa festa, num trio elétrico, sei lá. Ainda que o vizinho inconveniente ouvisse Tom Jobim eu me sentiria incomodada. Acho simplesmente absurda essa conduta de incomodar a vizinhança ouvindo música alto demais. Dá vontade de fazer algo como jogar ovos podres na casa da figura, quebrar suas vidraças, sei lá, algo pra chateá-lo também e compartilhar meu sentimentos numa espécie de troco. É, se ele me incomoda, por que não posso eu incomodá-lo? Bem, de qualquer forma, essa nunca foi minha conduta, eu nunca fiz nada assim. Eu nunca faço nada, apenas penso em como seria se fizesse. Sou mais uma anestesiada, entorpecida. Pelo quê eu não sei.
A maldita da música eu tentei ignorar, mas aí começou a interferir demais na leitura. Poxa, o livro é superbom, tem uma fluência estranha, fala de coisas tão pessoais e o cara despejando dentro da minha casa essa merda! Entupindo meus ouvidos com esse lixo! Resolvi então ligar meu rádio e pus num volume suficiente pra abafar o som lá de fora, mas aí tava alto demais aqui dentro pra continuar lendo. Desisti da leitura, parti pra o café da manhã.
Foi eu ligar o micro pra o som do cara sumir. Abaixei o meu também.
Mas agora não vai dar pra voltar a ler enquanto eu não terminar de escrever.
Talvez eu encontre algo sobre o que escrever quando for mais velha, quando a vida tiver se mostrado em outras faces pra mim, porque parece que o que vivi até hoje não pode ser transformado em palavras, ou se pudessem, eu nunca saberia como tornar as palavras compreensíveis aos olhos alheios porque minha vida é compreensível somente pra mim. Toda tristeza, toda miséria de espírito, todas as alegrias perdidas são nulas diante dos olhos dos outros. Parece que nada nunca existiu quando sai da minha memória. Talvez algum dia eu consiga fazer com que minha vida seja visível aos olhos dos outros. Talvez algum dia ela pareça válida aos olhos dos outros filtradas pelas minhas palavras.
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