Enquanto eu falava, olhava o veludo verde das folhinhas do jardim do DCE. Eu pude ver o movimento da sombra em nossa direção a medida que o tempo passava. É bom poder prestar atenção a essas coisas e prestar atenção no que é dito.
Senti formigamentos no lábio inferior, daqueles que antecedem as câimbras. Fui ao banheiro: perto da argola, estava inchado. Mais um incômodo. Eu precisava ir embora. Talvez eu quisesse ir embora, talvez eu não quisesse ir e isso me incomodava mais que o inchaço no lábio. Fui embora.
Entre outras coisas ele me disse que eu sou engraçada e que não sou tão solitária quanto pareço. É preciso reservar algumas coisas só pra gente, pois não? Muita gente me acha engraçada e acho que isso é bom, é bom pra mim ser engraçada. Muita gente já me disse que eu não deveria me
vestir assim, dessa forma agressiva porque eu sou muito querida, muito fofinha na verdade. Sim, eu gosto de ser fofinha e ser querida, mas só com as pessoas que quebraram a primeira barreira que ergui, a da aparência.
Enquanto eu falava, me sentia como uma cebola que perde as camadas. Nada de borboleta saindo do casulo, não, nada de borboleta: prefiro a cebola que perde as camadas porque o miolo, aquela parte mais interna quer sair, quer respirar, e tudo o mais prende, sufoca. E meu lábio formigava e inchava. E eu precisava ir embora. Na minha cabeça, marquei de almoçar com um amigo, como nos sábados anteriores. Sabia que talvez chegasse lá e ele já estivesse almoçando, mas eu não quis ligar. Pra dizer a verdade, não tive vontade de falar com mais ninguém. Pra dizer a verdade, ouvia um monte de vozes tumultuando as idéias frouxas que eu deixava escapar sem pensar nelas, porque se tivesse pensado no que dizia, talvez não tivesse dito nada. Um dos meus problemas é precisamente este: se eu pensar no que preciso dizer, fudeu, não falo nada. A espontaneidade, tanto pra falar quanto pra escrever, pra mim é fundamental.
Eu sei que ele leva muito tempo pra escrever e isso me deixa sem a menor paciência. Ainda não aprendi a não usar este meu parâmetro específico nos outros. Estranho isso, não? Ao mesmo tempo, eu sei respeitar muito o tempo das outras pessoas, entendo que cada um tem um tempo que não pode ser nunca comparado ao dos outros, mas nesse aspecto tão fundamental que é o da língua, tanto a falada quanto a escrita, neste aspecto eu não sei respeitar nada: eu quero tudo agora, pra já. E me incomoda ter que esperar por isso. me sinto como se participasse de um folhetim, esperando sempre muitos dias antes que a próxima parte, o próximo capítulo chegue. Isso me irrita sobremaneira. Talvez as cartas sejam bem melhores porque nelas o tempo, nem que seja o do correio, deve ser respeitado a despeito do que eu quero.
Quando cheguei ontem, meio sonolenta, meio bêbada, totalmente cansada, não conseguia parar de repetir mentalmente “20th century boy I wanna be your toy”
[i] que eu havia ouvido na festa, e até pensei em escrever muitas coisas, mas felizmente eu dormi antes.
Acordei e fui conferir se meu lábio desinchou. Desinchou. Noites de sono pesado fazem muita diferença...
Acordei e lembrei de
Temptation[ii]. Essa música tocou ontem na festa também e aí eu me lembrei dele. Por causa dos olhos dele. Esses benditos olhos dele. Um dia ele começou isso tudo dizendo que me observava. Que coisa!, detesto como as pessoas chegam assim e vão logo bagunçando aquilo que a gente tenta arrumar e arrumar e arrumar. Como o condenado grego que rola a enorme pedra morro acima e ela rola morro abaixo e assim ele continua durante a eternidade. Tem sempre que ter alguém pra bagunçar o coreto, pois não? Só se a gente deixar. Lembrei de um filme de vampiros que eu adorava na adolescência “garotos perdidos”, porque tem um momento em que alguém diz que o problema é você convidar o vampiro pra sua casa, aí fudeu. Pois é, acho que eu mesma abri a porta e disse “sinta-se a vontade”. Mas não, eu não quero mais ninguém aqui dentro não. As vozes que me tumultuam os pensamentos são os ecos de todas as pessoas que eu deixei entrar, feedbacks dos momentos de agudíssima tristeza, de desespero, de tudo o que ruiu, de tudo que era cristalino e diáfano e aí, num belo dia, implodiu. Houve coisas boas também, muito boas, mas as ruins sempre dão um jeitinho de se sobrepor, pois não?
Eu sempre falo demais e nunca sei mesmo quando parar...
Mas agora eu estava indo tão bem, tentando me organizar, tentando tão desesperadamente me organizar! Não, eu não quero mais brincar disso não. Chega de construir pra depois ver tudo cair. Eu não quero ser condenada a rolar a pedra morro acima e depois ser esmagada por ela morro abaixo. Prefiro já ficar logo espatifada ali embaixo e não me erguer nunca mais. Chega. Chega mesmo. É, eu sou pessimista? Pessimista é o caralho, eu sou é realista! Tudo sempre acaba e da pior maneira possível porque eu tô sempre levando alguma porrada da porra do sobrenatural. Ah, eu sei lá. Sei lá! Dá licença d’eu não saber nada?! Eu não sei mesmo. Porque eu sou assim, fico imóvel diante do medo. Pessoas me dão medo, embora eu sorria gentilmente pra elas. Embora eu faça gestos. Embora eu não vá embora. Pessoas são um perigo iminente!!! Por isso prefiro os livros. Por isso eu amo os dicionários: está lá, tudo está lá e continuará lá. Você abre, procura em ordem alfabética e pronto. Mas as pessoas, as pessoas são o meu flagelo. Por isso o bom-humor e por isso a Solidão. As duas coisas andando de mão dadas comigo. Uma vez eu escrevi que a Loucura havia começado a brincar comigo também porque a Melancolia a havia convidado a se juntar a nós. Mas Ela recuou um pouco, talvez tenha se entediado comigo. Já que a Melancolia é coisa que não se afasta nem com muita reza de benzedeira forte, pelo menos a Outra recuando já me dá um certo espaço, já me deixa respirar um pouco mais porque suas brincadeiras são daquelas que machucam e eu sempre terminava chorando.
E mesmo que eu escute músicas que parecem ter sido feitas pra mim, pra mim neste exato e preciso momento, como
Hideous Town[iii] e
My Finest Hour[iv], isso é tudo mais uma brincadeira cruel Dela. Nada disso está de fato acontecendo pra fora de mim. E ainda que eu vá a mil festas e escute
20th Century Boy e
Temptation mil vezes, nada disso está acontecendo pra fora de mim. Melhor ficar com os dicionários, inofensivos dicionários, do que com as pessoas, essas vilãs eternas da minha vida. Sartre é que estava com a razão: o inferno são os outros. São mesmo.
Chega a ser pateticamente engraçado isso, essas imagens que faço de mim mesma cercada por livros e potes de sorvete e barras de chocolate. Antes eles que os gatos. Gatos são bonitos e preguiçosos, mas eu realmente acho nojento isso deles subirem em tudo e espalharem pêlo. Mas admiro a atitude deles de não se apegarem às pessoas e sim às casas. Gatos são criaturas espertas. Um dia eu aprendo isso também.
Agora é o momento de negação, de negar tudo tudo tudo. Agora é o momento em que se eu não corro, o bicho come. Não, se eu fico o bicho não pega porque ele não me vê. Eu fico aqui bem escondidinha e ele vai passar correndo por mim sem me ver. E é isso o que farei, me trancarei em mim porque nada mais faz sentido mesmo. Chega de ter expectativas. Chega de esperar. Tá vendo como os dicionários são ótimos e lindos?! Escrevo espectativas com s e o editor de texto do Word sublinha em vermelho, então eu abro o dicionário e confiro que a palavra certa é com x, então vou corrigir na hora o que, de outra forma, eu não corrigiria nunca. Mas é claro que não confio no editor de texto do Word! Ele vive sublinhando em vermelho palavras que estão mais do que corretamente escritas. O problema dele é que ele não conhece muitas palavras e é por isso que eu gosto mesmo é do Houaiss. Aí, tá vendo, lá vem ele sublinhando o Houaiss. Deixa ele sublinhar o tanto quiser.
Antes eu corria, sabe? Corria mesmo, literalmente. Depois passei pra fase do confronto direto, do embate corpo a corpo. Ia lá e falava tudo o que eu queria assim, na cara mesmo, olhando no olho. Agora? Agora eu fico quieta porque nada nunca deu certo, entre tudo o que tentei, entre todas as possibilidades que tentei, nada deu certo, então a minha tática agora é essa: eu não faço mais nada. Quer dizer, ainda escrevo, mas escrever é uma necessidade maior que eu. Ainda que eu não escreva pra postar neste blog, escreverei no meu diário de folhas escuras de papel reciclado e sem cloro. Gosto das folhas assim, mais cruas. Acho que fica até mais bonito vomitar ali a crueza da minha vidinha boba e sem poesia. As folhas escuras, cor de terra, cor de matéria orgânica, cor das minhas entranhas. Combina.
Mas a mão com a caneta não é tão ágil quanto os dedos nas teclas.
Mas as palavras aqui, escritas com essa letra de computador, não parecem minha por mais que eu mesma as tenha digitado. E, quando desligo o computador, tudo se acaba.
O papel é melhor.
Preciso parar de digitar e fazer minha faxina. Decidi fazer uma faxina. Pelo menos as coisas do lado de fora ficarão mais organizadas. As de dentro, bem, me entendo com elas depois. Ou talvez nunca, mas agora não é hora de se pensar nessas coisas porque senão Ela volta e bagunça tudo de jeito que nem eu e nem nenhum especialista consegue consertar.
Here’s where the story ends[v].
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